domingo, 5 de outubro de 2008

GANHEI CORAGEM


"Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente
tem coragem para aquilo que ele realmente conhece", observou
Nietzsche. É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei
em segredo. Por medo. Albert Camus, ledor de Nietzsche,
acrescentou um detalhe acerca da hora quando a coragem chega:
"Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que
sabemos". Tardiamente. Na velhice. Como estou velho, ganhei
coragem. Vou dizer aquilo sobre que me calei: O povo unido
jamais será vencido: é disso que eu tenho medo. Em
tempos passados invocava-se o nome de Deus como fundamento da
ordem política. Mas Deus foi exilado e o povo tomou o seu
lugar: a democracia é o governo do povo... Não sei se foi bom
negócio: o fato é que a vontade do povo, além de não ser
confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os
programas de televisão que o povo prefere. A Teologia
da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação
histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia o
povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que
Moisés, líder, se distraísse, na montanha, para que o povo, na
planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro.
Voltando das alturas Moisés ficou tão furioso que quebrou as
tábuas com os 10 mandamentos. E há estória do profeta Oséias,
homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o
rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras idéias. Amava
a prostituição. Pulava de amante a amante enquanto o amor de
Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou...
Passado muito tempo Oséias perambulava solitário pelo mercado
de escravos... E que foi que viu? Viu a sua amada sendo
vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e
disse: "Agora você será minha para sempre..." Pois o profeta
transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de
Deus. Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta.
Ele amava a prostituta. Mas sabia que ela não era confiável. O
povo sempre preferia os falsos profetas aos verdadeiros,
porque os falsos profetas lhes contavam mentiras. As mentiras
são doces. A verdade é amarga. Os políticos romanos sabiam que
o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos o circo
era os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo
gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram.
Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em
donos do circo. O circo cristão era diferente: judeus, bruxas
e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças
ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o
cheiro de churrasco e os gritos. Reinhold Niebuhr, teólogo
moral protestante, no seu livro: O homem moral e a sociedade
imoral observa que os indivíduos, isolados, têm
consciência. São seres morais. Sentem-se "responsáveis" por
aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a
razão é silenciada pelas emoções coletivas. Indivíduos que,
isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se
incorporados a um grupo, tornam-se capazes dos atos mais
cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo
num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida
do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é
moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo. Meu
amigo Lisâneas Maciel, no meio de uma campanha eleitoral, me
dizia que estava difícil porque o outro candidato a deputado
comprava os votos do povo por franguinhos da "Sadia". E a
democracia se faz com os votos do povo... Seria maravilhoso se
o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo
os interesses da coletividade. É sobre esse pressuposto que se
constrói o ideal da democracia. Mas uma das características do
povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido
pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide
as eleições - e a democracia - são os produtores de imagens.
Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as
imagens mais sedutoras. O povo não pensa. Somente os
indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se
recusam a ser assimilados à coletividade. Uma coisa é o ideal
democrático, que eu amo. Outra coisa são as práticas de engano
pelas quais o povo é seduzido. O povo é a massa de manobra
sobre a qual os espertos trabalham. Nem Freud, nem Nietzsche e
nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus Cristo foi
crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás. Durante a
Revolução Cultural na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava
violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras
coisas o povo é capaz de queimar. O nazismo era um movimento
popular. O povo alemão amava o Führer. O mais famoso dos
automóveis foi criado pelo governo alemão para o povo: o
"Volkswagen". "Volk", em alemão, quer dizer
povo... O povo unido jamais será vencido! Tenho
vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de
gostos aristocráticos... Mas, que posso fazer? Gosto de Bach,
de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de
silêncio, não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto
de música sertaneja, não gosto de futebol (tive a desgraça de
viajar por duas vezes, de avião, com um time de futebol...).
Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu
venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e engolir sapos
e a brincar de "boca-de-forno", à semelhança do que aconteceu
na China. De vez em quando, raramente, o povo fica
bonito. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça é
preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute:
"Caminhando e cantando e seguindo a canção...". Isso é tarefa
para os artistas e educadores: O povo que amo não é uma
realidade. É uma esperança.

(Folha de S. Paulo,)

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